Narrativas, jogos e novas metodologias para  desmistificar o aprendizado matemático

[…] a razão de ver um vídeo de unboxing é descobrir o que há dentro do pacote. Ou seja, se revela algo, e até as crianças menores ficam curiosas pela informação (kidd e hayden, 2015).

De fato, a maioria dos animais sente o impulso de explorar seu entorno em busca de comida, refúgio e companhia. A necessidade de informação é essencial à existência. A maior parte dos pesquisadores concorda que é uma parte inata de nossa natureza (lau et al., 2018). Sentimos o impulso de descobrir. […]

Desde crianças que veem apenas mãos abrindo embalagens de brinquedos até macaquinhos que escolhem botões de recompensa e adultos que tomam pequenas decisões financeiras, o desejo de obter informação e de resolver a incerteza parece ser fonte importante de motivação. Não obstante, o que desperta a curiosidade e o desejo de buscar informação varia de acordo com o indivíduo e o contexto. Pense em uma zona de desenvolvimento próxima da curiosidade. Se a informação no entorno já é conhecida por um indivíduo, não há mistério, não há incerteza.

Se o contexto é totalmente desconhecido, é possível que o indivíduo não tenha um ponto de referência para antecipar o resultado. Uma criança pode estar encantada pensando em que brinquedo haverá na caixa, mas essa mesma criança não teria curiosidade a respeito de um câmbio monetário. As experiências e o conhecimento acumulado de cada pessoa influem em seu compromisso com a busca de informação. Por natureza, todos nos sentimos atraídos por descobrir, mas nem todos queremos descobrir as mesmas coisas.

A busca de informação e a narrativa

Apesar do exposto anteriormente, parece que todas as pessoas podem sentir fascinação por uma boa história. Jerome Bruner, entre outros, argumenta que a narrativa é um meio importante para entender o mundo (bruner, 1986; gottschall, 2013). O tradicional arco da história inicia com uma introdução ou exposição que apresenta as personagens e o contexto. Depois, há uma ação ascendente à medida que aparecem os conflitos e obstáculos. Isso nos leva a perguntar o que acontecerá. Finalmente, o clímax traz a resolução e satisfaz nosso desejo de saber. Essa estrutura temporal expõe as regras do jogo, os motivos, as causas e as consequências das ações. Explica-nos como funciona o mundo e nos prende com a incerteza do que vai acontecer depois.

A narrativa e a busca de informação têm um papel especial nas maneiras como nosso cérebro aprende e se relaciona com o mundo. As histórias, por exemplo, nos ajudam a recordar. Antes que as pessoas pudessem ler e escrever, careciam de outras ferramentas que as ajudasse a recordar e transmitir as regras sociais, as hierarquias e os rituais culturais. As histórias, os mitos e os poemas, desde a Odisseia de Homero até a Bíblia e o Popol Vuh, satisfizeram essa necessidade (foer, 2012). Os membros de um grupo se reuniam para escutar histórias com ritmos e estruturas narrativas que as tornavam fáceis de recordar. O sentido de pertencimento ao grupo agregava um elemento que afiançava as lembranças. […]

Assim como com a busca de informação, a experiência dita o que nos surpreende e o que nos interessa. As crianças pequenas, que ainda estão formulando suas definições de mundo, adoram a repetição. Querem escutar a mesma história muitas vezes (pais, recordem esses dias). Elas estão gerando confiança em sua habilidade para fazer previsões corretas e sentir segurança no que sabem. As crianças maiores, adolescentes e adultos, também podem desfrutar das histórias previsíveis, como as que são parte de uma série. Nestas, a busca de informação é sutil. Para as crianças pequenas se trata de questionar se o que aconteceu na última vez voltará a acontecer. Por outro lado, uma pessoa mais velha que assiste a uma série pode desfrutar da incerteza de como a personagem principal superará o novo obstáculo (kendeou et al., 2008).

Os bons narradores sabem como aproveitar esses traços cognitivos. Eles captam nossa atenção injetando incerteza ao já conhecido. Eles nos convidam a mundos em que nosso cérebro opera em uma região proximal de busca de informação. Sabemos o suficiente para tentar adivinhar o que acontecerá, como acontecerá ou como pode se sentir uma pessoa, mas não temos certeza. É preciso descobrir.

As narrativas mais poderosas também nos afetam emocionalmente. Não nos preocupamos somente com nossas previsões dos acontecimentos, mas também com as personagens. As histórias nos levam além da simples busca de informação: conectam e desenvolvem nossa empatia e nossa habilidade de ver o mundo pelos olhos de outra pessoa. Os investigadores chamam essa habilidade de teoria da mente (schaafsma et al., 2015).

Para que o gerador de inferências em nosso cérebro seja eficiente, é preciso que sejamos bons em interpretar os motivos de outros. Necessitamos de uma forte teoria da mente para avaliar o estado emocional de outra pessoa e prever o que ele ou ela fará em determinada situação. Precisamos ter a capacidade nos colocar no lugar do outro.

Na época de ingressar na escola, as crianças deveriam estar desenvolvendo sua teoria da mente. Envolver-se em histórias pode acelerar e expandir esse desenvolvimento (hofmann et al., 2016). E, quando se cria uma conexão emocional com as personagens, isso pode influenciar seu próprio comportamento (barraza et al., 2015). 

Na época de ingressar na escola, as crianças deveriam estar desenvolvendo sua teoria da mente. Envolver-se em histórias pode acelerar e expandir esse desenvolvimento (hofmann et al., 2016). E, quando se cria uma conexão emocional com as personagens, isso pode influenciar seu próprio comportamento (barraza et al., 2015).

[…] O mundo é um lugar rico e complexo. Muitos estímulos competem pela atenção dos estudantes. A voz do professor e o escrito na lousa podem ser dignos de atenção, mas também há uma chuva suave batendo nas janelas da sala de aula e a cadeira é um pouco incômoda. Estes são alguns dos estímulos imediatos. O estudante também pode estar pensando em eventos passados, como em uma discussão dessa manhã com seu amigo ou com seu irmão, ou pode estar sonhando com o futuro, com algo especial para comer no almoço ou em um encontro com os amigos depois da escola.

A memória de trabalho, nossa habilidade de balancear vários elementos de informação na mente, é limitada (cowan, 2016). Muitas coisas ameaçam sobrecarregá-la. Conseguir que os estudantes prestem atenção às instruções da atividade do momento é fundamental para conseguir sucesso no aprendizado. Se conseguirmos que os estudantes deem importância à aprendizagem dos conteúdos e que invistam esforço nela, melhor ainda. As histórias podem ajudar.

Incerteza de baixo risco

Quando muitos de nós pensamos em uma lição de Matemática, imaginamos algo relacionado a encontrar respostas específicas. Contudo, 8 + 3 = ? não é um problema com um nível de incerteza atrativo para despertar nosso desejo de informação. Um vídeo de unboxing nos convida a realizar uma mistura de simulações sobre qual pode ser o prêmio lá dentro. Será um adesivo? Um cachorrinho de plástico? É um jogo de adivinhação de baixo risco. E, independentemente de estarmos certos ou não, nosso cérebro nos recompensa por descobrir (kidd y hayden, 2015). A solução de problemas matemáticos como 8 + 3 = ? é de alto risco. Poderia ser 10 ou 12? O correto está bem. O incorreto está mal. Apesar de as respostas exatas serem resultados importantes na aritmética, esse tipo de problema não capta nosso impulso motivador de busca de informação.

A incerteza de baixo risco, por outro lado, pode ser introduzida facilmente nas lições de Matemática. Em vez de enfatizar o resultado, por exemplo, pode concentrar a atenção no processo. Quantas formas distintas podemos encontrar para resolver 8 + 3? Dois? Três? Cinco? Pode-se calcular 8 + 1 + 1 + 1. Ou podemos simplesmente recordar uma soma memorizada. Outra opção é decompor o 3 em 2 + 1 e usar a estratégia de somar 10: (8 + 2) + 1. Neste caso, a ação de averiguar é satisfatória por si mesma. Não é realmente importante se os estudantes encontram quatro formas de resolver o problema ou dez.

A dúvida também pode ser introduzida de maneira produtiva na definição de um problema. Há vários exemplos que apresentam tentativas de captar as redes de busca de informação dos estudantes dessa maneira. Uma estratégia pode ser apresentar uma situação sem uma pergunta. Sofia tem 50% mais seguidores em redes sociais que Héctor. Héctor tem 112 seguidores. Com isso se pode desafiar os estudantes, questionando-os: “quantos problemas matemáticos vocês acham que podemos criar usando essa informação?” ou “o que acham que o livro lhes pedirá para resolver com essa informação?”. Ambas as perguntas ativam o pensamento matemático e a curiosidade pela pesquisa.

Outra estratégia é revelar gradualmente detalhes do problema. Mostre um gráfico sem títulos nem números. O que acham que o gráfico mostra? Depois de mostrar os títulos, desafie-os a prever o problema que resolverão. Lembre-se de manter as indicações dentro do repertório de modelos mentais dos estudantes. Eles terão de saber o suficiente sobre a situação e a Matemática para poder ativar seus geradores de inferências, suas simulações preditivas do futuro. E para que não se torne algo entediante. Os estudantes têm muitos outros estímulos que prendem sua atenção (meyer, d., 2011).

O tradicional arco da história inicia com uma introdução ou exposição que apresenta as personagens e o contexto. depois, há uma ação ascendente à medida que aparecem os conflitos e obstáculos. isso nos leva a perguntar o que acontecerá.

Envolvimento emocional

Da mesma forma que as personagens de uma história trazem um elemento emocional para a busca de informação, engajar os estudantes nas atividades matemáticas pode garantir seu envolvimento. João resolveu o problema memorizando a soma. Maria o fez de outra maneira. De que maneira acreditam que ela fez? Carlos utilizou um método diferente. Ele o explicará. Vocês acham que chegará à resposta correta? Os colegas de classe de uma criança são como as personagens de uma história. Podem se identificar com eles e podem se importar com o que lhes aconteça. Realizar simulações com pessoas que conhecem ativa a parte do cérebro da teoria da mente e a empatia dos estudantes. E se um estudante inventa uma estratégia inesperada, a surpresa amplifica a atenção ainda mais. […]

O envolvimento emocional não tem de ser construído unicamente com estudantes reais da classe. As histórias fictícias funcionam também. Com certeza a ficção é comum nas aulas de Matemática, sobretudo nos problemas escritos. Esses problemas podem ser usados para situar relações matemáticas em contextos conhecidos. Paulo tinha 3 borrachas. Seu amigo lhe deu algumas e agora ele tem 11 borrachas. Quantas borrachas o amigo de Paulo lhe deu? Esse problema representa uma situação de mudança, especificamente uma situação de valor faltante. Fran ganhou vários jogos de videogame em seu aniversário. Agora tem 13 jogos de videogame. Antes de seu aniversário, tinha somente 6 jogos. Quantos jogos Fran ganhou de presente? Ainda que a informação se apresente em uma ordem diferente e com um conteúdo diferente, esse segundo problema é matematicamente igual ao primeiro: a + ? = b. Esses problemas, no entanto, não têm estrutura dramática. Não há exposição que relacione os estudantes com Paulo ou com Fran. Não há razão para que se preocupem ou para que se perguntem (ou façam previsões) o que acontecerá com eles. Os problemas escritos tendem a carecer do drama que desencadeia a busca de informação emocionalmente carregada. Isso não faz diferença para os estudantes. Não há envolvimento emocional. — De acordo com a Lei 9.610/98 é proibida a reprodução total ou parcial desta website, em qualquer meio de comunicação, sem prévia autorização.

Nossos cérebros são geradores de inferências. mantêm-se realizando simulações do que acontecerá com base em experiências anteriores.

As narrativas genuínas, com bom desenvolvimento de personagens, ação ascendente, com obstáculos significativos e consequências relacionadas a resolver esses bloqueios prometem ativar a motivação carregada de emoção da busca de informação entre os estudantes até mesmo em uma aula de Matemática. As boas histórias causam envolvimento. Crie uma história para Fran, a personagem do problema anterior.

Talvez ela viva em outro planeta. Pode ser que se sinta estranha e lute para se enturmar com seus pares. Ela se pergunta se ter um videogame popular a tornará popular. Saberá escolher o jogo certo? Pode pagar por ele? O jogo lhe trará amigos? Serão amizades genuínas? Como pode criar vínculos com as outras crianças? Ainda que a história de Fran aconteça em outro planeta, sua situação e preocupações são muito comuns. Navegar pela história é uma aventura episódica, recheada de situações matemáticas periféricas incorporadas, que desvenda o que motiva as pessoas e o desejo de aceitação social.

Se os estudantes se conectarem emocionalmente com Fran, vão se sentir motivados a descobrir o que acontecerá com ela. Vão querer escutar, ler ou ver o próximo capítulo ou episódio. Não posso garantir que possamos transformar as crianças no equivalente matemático de quem vê maratonas de séries, mas as pesquisas sugerem que, se for o caso, podemos expandir o uso da narrativa para ampliar o envolvimento muito além do que é comum em uma aula de Matemática hoje.

Normas para a aprendizagem constante

Recorde as pesquisas que sugerem que nossos cérebros são geradores de inferências. Mantêm-se realizando simulações do que acontecerá com base em experiências anteriores. Pense no estudante que tem um histórico de fracasso e até mesmo humilhação na aula de Matemática. O que acha que seu cérebro vai prever quando for realizada uma pergunta ou aplicada uma avaliação? Pode ser que o estudante esteja pensando: “Eu vou errar. Vou parecer tolo. Sou tolo. O que posso fazer para evitar essa situação?”. A ansiedade devora os recursos de atenção e deixa o estudante com menos recursos cognitivos para aplicar nas tarefas (foley et al. 2017). O medo de errar aumenta a probabilidade de que suceda. Uma resposta incorreta confirma a previsão, e isso aumenta a crença de ser incompetente em Matemática.

As normas culturais, especialmente em países ocidentais, reforçam a ideia de que algumas pessoas são boas para Matemática e outras não (foley et al., 2017). Se o pai de um aluno diz: “eu sempre tive dificuldade nessa disciplina”, isso pode tornar a competência em Matemática um traço genético. Não ter bom desempenho pode significar que o estudante não tem predisposição para a Matemática. Se for bem, significa que a pessoa tem um talento natural para a Matemática e não precisa se esforçar para ter sucesso. Ambos conceitos são errôneos e minam o esforço (hwang, reyes e eccles, 2019). O estudante que vai mal se desconecta. O estudante com talento natural evita os desafios, porque a Matemática deveria ser fácil. Esses ciclos psicológicos infrutíferos devem ser quebrados para que os estudantes se envolvam de maneira positiva na aprendizagem da Matemática.

As histórias corretas podem ajudar a promover um modelo preditivo diferente para o estudante. Mencionei pesquisas que endossam o que os publicitários já suspeitam há muito tempo: as histórias emotivas influenciam o comportamento. O que acontecerá se algumas das narrativas utilizadas para envolver os estudantes na aprendizagem de Matemática também modelarem comportamentos para se recuperarem de erros? Ler histórias de perseverança ante os obstáculos pode tornar os erros e fracassos em algo comum, convertê-los em características típicas do processo de aprendizagem (lin-siegler et al. 2016). Se até mesmo as personagens inteligentes da história cometem erros e ainda assim alcançam sucesso, talvez equivocar-se não signifique ser tolo. A empatia (teoria da mente) nos permite ver e sentir o mundo como se fôssemos outra pessoa. As personagens atraentes nas histórias conseguem essa conexão, e podemos aproveitá-la para alimentar os mecanismos de geração de inferências nas mentes dos estudantes com simulações diferentes que estimulam a perseverança e resiliência na aprendizagem.

No entanto, essas histórias têm de sair da sala de aula e chegar até em casa e à cultura em geral. Muitos pais também necessitam de novas narrativas para o ensino de Matemática. Todas as aplicações da história e a incerteza que descrevi podem desempenhar papéis fora da escola. Imagine atividades com baixa dificuldade que os pais podem fazer com seus filhos. Quantos números primos você acredita que veremos no caminho para a loja? Transforme situações cotidianas em jogos. Vejamos se podemos melhorar nosso recorde. E conecte com a emoção. Dê às crianças histórias que possam compartilhar com seus pais, incluindo suas próprias histórias de perseverança e crescimento. Que seja pessoal e que tenha impacto.

David Dockterman

é catedrático e professor da Escola de Pós-graduação em Educação de Harvard.